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2 de out. de 2012

Todo dia

Já não há o bater das pálpebras. Debaixo, debaixo d’água. Debaixo do sonho d’água. Fluidez, imersão, colorido turvo. Molhado- imenso. Impulsiono as pernas enquanto os braços vão leves e abrem caminhos. Já não sinto o gosto salgado. Há calmaria, texturas e diferenças. Sinto, vejo e exploro. Escuto o movimento em corrente, a música aveludada e natural do meio, de mim. Nado como quem dança em um ritmo solto e essencial. Liberdade sinestésica. Deparo-me com histórias esquecidas e submersas, novas histórias. Estórias. Vejo-me ao longe, em superfície, de fora, analisável; contemplável. Um corpo, uma rede, um fio conector. Um sonho. Um sonho verde-azulado. Um sonho debaixo do sonho d’água. Um sonho sem vontade de voltar. Mas tinha que respirar e voltar. Tinha que passar pelo sonho alheio e retornar ao meu próprio sonho, todo dia, todo dia, todo dia. "Debaixo d'água tudo era mais bonito, mais azul, mais colorido, só faltava respirar".  

21 de set. de 2012

Amor, eu, textos e fim




Eu me apaixonei antes de saber o seu nome. Na verdade, foi amor, e olhe que eu nem havia chegado ao final da primeira frase. Era tão eu, que a identificação me deixou com os poros gritando em loucura. Nunca fui muito aficionada a minha pessoa, vivo em conflito. No entanto, o nosso encontro, não notado por você, foi algo narcisista. Toda a negação e alguns poucos benefícios de mim mesma em outrem. Todas as besteiras que vomito diariamente em textos quase banais. Todos os pontos rápidos, o ritmo que nem eu identifico, pois não consigo me acompanhar. Vou psicografando até que ao fim tenho coisas, escritos e mais coisas. Em você também leio desejos, cotidiano, amores, vulgaridade, doces e a falta de explicação. Torço para que os nossos pensamentos continuem completamente inconstantes, e as paranoias sejam exercitadas na academia. Como brigadeiro enquanto tomo cerveja, deve servir para explicar essa efusão acíclica. Hoje me chamaram de pleonasmo, e deve ser daqueles bem burros. No mesmo dia fui  choro,  cinismo e o resto. Porém, também fui esse outro amor, a possibilidade de poligamia. Sim, estou presa e saindo de mim. Estou te entendendo através das minhas andanças, e dando meia volta em meu próprio embaralhar. Mas amo essa confusão abstrata. Até o meu namorado te ama, ele só não sabe, mas é algo inerente. Eu sempre termino as minhas tentativas de explicação com interrupções abruptas. Toda aquela  euforia inicial se perde nas linhas. Eu escrevo e vou gastando a agilidade, o pensamento. Escrevo e vou desapaixonando. Acalmo. Sou baiana e, quando não estou na Bahia, moro na rua do Dendê. No mais, acabou a cerveja e não há garçom para buscar a próxima, mas deixo aqui algo dessa relação que começa e termina em uma única pessoa. Até o seu próximo texto. Até a próxima identificação platônica.

10 de set. de 2012

Do voo ao nado

Que fique este texto sobre as coisas que não escrevi. Que fique o meu receio, a minha vontade, tudo aquilo que também sou e não serei em palavras. Que cada peixe volte a nadar pelo meu não tamborilar de dedos sobre o teclado. Que esta bandeira pudica e suja de lama possa se rasgar com o tempo, pois alvejante não combina com intensidade. Que eu escreva para me satisfazer, para que ao menos a masturbação mental não seja tabu. Sou tédio, sabor, decepção e medo. Apesar da autocensura, também sou o que escrevo, com todos os erros. Sou peixe. Sou humana. Como sushi. Guardo aqui parte do que não pode ser pronunciado, pois foi deixado para trás, quando o telefone voltou ao gancho sem os devidos sinais de pontuação. Atualmente guardo muito do comum. Guardo-me mais do que a qualquer outro. Guardo essa doença e essa loucura que, infelizmente, não conseguem desatar os nós. Guardo meus dias sátiros e reflexões objetivamente divagantes. Guardo para me mostrar, e não demonstrar o que não sou e não lucro. Que eu sempre possa guardar um pedaço desse eu de hoje. Que essa antropofagia multipolar fique em registro e desatino. Que fique algo desse algo efêmero.

7 de set. de 2012

6+6=6




Fim de festa, ainda de salto, fim de carreira. Pedi amnésia, só tinha vodca, faltou o álcool. A data exigia comemoração característica, mas permaneci frustrada, quase contida, sem ao menos ficar bêbada... azar garantido. Abstinência em 6 tempos. Vai ver que é o fato de ser  quase o dia 7, já é madrugada, afinal. Hoje o 6 se complementou em seu similar invertido. Encaixe. 12 em metade. Minha senha é tão sugestiva quanto a data. Deve significar algo, toda essa obscena coincidência numérica. Acredito em números, são escancaradamente manipuláveis. Gosto da ideia, da referência, do implícito. Gosto de mim nesse vestidinho não meu, que ao fim quer dizer nada. Não há experimento.  A essa hora os fragmentos são desconexos. Penso em  um banho e em como assassinar o meu vizinho surdo. Penso em sangue. O 7 já está raiando, e ainda sou obrigada a ouvir os gemidos da TV, que atravessam essas paredes de papel, conprovando o meu silêncio passivo. Moro no bloco C, apartamento 03, conexão em 6. Ainda está escuro. A moça do tempo não explicou, tão pouco previu essa minha agonia. Os psicólogos ainda pensam a melhor forma de análise. A relevância foi finalizada com um copo de leite, para acalmar o estômago e a ansiedade. Nem adianta chamar os universitários, há greve. O jeito é significar em números a minha falta de significados. 6+6+6. Perseguição. Paranoia. Sono.  

29 de ago. de 2012

Olhos vermelhos e pantufas




 Olheiras e bocejos são rotineiros, cochilo quando mal acordei. O confortável pijama é o meu companheiro nessa espera de um milagre. As horas me burlam. Faço as contas, acordo aos pingos, sonho com números e ouço uma sinfonia de despertadores. A cama, o sofá, a cadeira... o carro vai no balanço da cantiga de ninar, convidando-me a fechar os olhos. Chamo nomes em minha incongruência, penso em diálogos que não sei se existiram. O dia passa encoberto por uma leve névoa, e eu cruzo esse triste caminho em minhas pantufas azuis e felpudas. O estado zombie dura enquanto a luz do sol se faz presente. Do meu quarto ouço vozes e tento manter o horário. Há vida dentro da casa e fora dela. Há o movimento enervante , energia fluída e palpável, quando tudo o que quero é desligar o mundo e diminuir o ritmo. A noite me brinda com uma vitalidade que provem das profundezas do inferno. Os olhos vão vermelhos, mas o corpo está desperto. A insônia mantém minha mente acesa, enquanto apelo aos chás, aos florais e à dança da chuva. Mandingas me interessam. Troco a roupa por outro...pijama? As horas passam. Leio versos, leio imagens, leio livros, a bíblia, as receitas de bolo e a bula. As horas passam. Não aguento mais olhar para o computador. Cadê as vozes enervantes? Há vida na televisão e um leve ronco de quem se deleita com o descanso. As horas passam. Há paz, o tédio, o barulho da geladeira e enfim sono, cansaço. Feliz, fecho os olhos. Três horas depois antecipo até mesmo o despertador e me torturo com um banho gelado.  Já não sinto fome e a luz me ofusca, devo mesmo ter me transformado em uma criatura das trevas, só não sei quando isso ocorreu, já que eu estava acordada e nada vi.

22 de ago. de 2012

Vai saber?


Eu guardo música enquanto passeio pelo jardim. Sinto a brisa, sinto o cheiro... reparo as cores, o pouco movimento e o tempo que passa diante dos meus olhos. Hoje, nada do que faço está errado, pois já não me importo. Os paradoxos me complementam quando ando tão cheia de tudo, abusada desse quase sempre. Palavras, pés descalços, peripécias, pleonasmos, paisagens, paixão, paixão...ECOA. O cabelo vai solto e esvoaçado, cheio, natural. Que olhem, pois sei que só eu vejo. Não sorrio, apenas vejo. Poupo. Ando comigo mesma, apenas aceitando. O abraço é solitário e vai ao meu alcance, à minha medida. As mãos vão soltas, acompanhando o compasso. A melodia é silêncio em tons crescentes. O contraste no branco vira arco-íris. A folia vai condensada na quietude, no fim que é começo, na reticencias avassaladora de quem bem conhece os três pontos seguidos. Ansiedade, arritmia, afinidades...tudo segue a corrente.  

1 de jul. de 2012

São Pedro, Viúvas e Tradição




Na manhã do dia 29 de junho eu acordei com um atípico: “...e aonde compro milho?”. A pergunta foi feita em alto e bom tom, por isso o meu despertar assustado. Ao verificar qual o motivo daquela zuada, encontro minha família reunida para o café, decidindo os preparativos para o festim de São Pedro. Minha mãe, que não mora aqui em Petrolina, chegou durante a madrugada e já encabeçava os afazeres.  Àquela hora, a fogueira já havia sido comprada. Aos 91 anos, minha avó Tereza reluzia de felicidade por mais uma vez ter os filhos em casa.

Tradição, essa é a palavra que norteia a minha família quando chega o final do mês junino. Recordo que desde menina era essa mesma euforia e agitação. Eu sempre assisti dona Tereza celebrar o 30 de junho, dia de São Pedro, também protetor das viúvas. Todo ano, o genro João doa uma fogueira à matriarca, para que ela possa celebrar. Como deu pra perceber, a história é mais velha do que a minha existência, pois nem cheguei a conhecer o meu avô, apesar de estar presente nas comemorações em sua homenagem.

A fogueira foi acesa no início da noite. Desde então, apesar do seu corpo frágil, minha avó esteve preparada para receber os seus convidados. O churrasco já queimava na brasa, o forró pé de serra tomava conta do ambiente, e a mesa estava repleta de delícias do período, como macaxeira, bolo de milho, canjica, amendoim e licores variados. Assim como eu fiz um dia, as crianças, ao redor das labaredas, estouravam os seus fogos.     

Não sei por que São Pedro é o protetor das viúvas. Por curiosidade, interroguei algumas tias sobre o motivo. Elas também não sabiam a resposta. Achei o fato engraçado, pois, apesar de não saber ao certo o pretexto, encaramos o momento como tradição: o pai da minha avó acendia uma fogueira pela sua finada esposa, e dona Tereza continua acendendo essa chama pelo meu avô Adelmar. Ao fim, preferi não ir a fundo em minhas indagações, para que o festejo siga exatamente do mesmo jeito: mágico e sem respostas. Para os familiares, a essência do festim é reunir os parentes e amigos. Eu gosto mesmo é do tom alaranjado das ruas, iluminadas pelas fogueiras; gosto da correria das crianças e a fumaça do estouro dos fogos; gosto das conversas paralelas, gosto dos sabores; gosto, principalmente, da razão para comemorar. O São Pedro pode ser menos colorido que o São João, porém, para nós, é mais acalentador.
   
Durante a festa, como apreciadora participante, eu “pescava” algumas conversas ao meu redor. Foi assim que ouvi uma das minhas tias comentar, que no ano seguinte não haveria comemoração, por conta da bagunça na casa. Sem compreender aquela justificativa esdruxula, prontamente interroguei a maior interessada no evento, se ela deixaria que o ritual acabasse. Minha avó, apesar da dificuldade na fala, fruto de um problema na garganta, de forma enfática respondeu: “Só vai acabar quando eu morrer!”. Do outro canto, outra tia fez questão de complementar: “Nem quando ela morrer, pois aí vamos fazer a fogueira em sua homenagem”. Cá com os meus botões, eu apreciei aquela resposta. No futuro vamos reinventar a roda para manter acesa a tradição.

Em um tom sereno e apreciando as labaredas, minha avó continuou o seu embalo na cadeira de balanço. Na sala, de maneira destoante do resto da decoração, o retrato pintado do meu avô mirava os inúmeros convidados, que disputavam o espaço. Ao lembrar o velho Adelmar, e levando em consideração quase três décadas desde o seu falecimento, perguntei a dona Tereza, se naquele dia ela ainda recordava o meu avô. A velhinha olhou para a aliança, ainda presa no dedo enrugado, voltou a encarar a fogueira, e respondeu de forma engasgada: “Eu ainda sinto falta dele”. Depois de certo tempo ao seu lado, em silêncio, por respeito às suas memórias, cheguei à conclusão que além de alegria, o ambiente estava repleto de saudade.